O Vale do Jequitinhonha


O Vale do Jequitinhonha, região situada no nordeste do estado de Minas Gerais, há anos vem carregando os problemas decorrentes da seca e o estigma de miserável que tem marcado, profundamente, os discursos produzidos sobre ele. 

Este artigo pretende questionar os discursos que enfatizam a condição de pobreza dessa região e que desconsideram as muitas maneiras de interpretá-la e ressignificá-la, apresentando outras possibilidades de leitura que passam, inclusive, pela cultura popular. Leituras que passam, também, pelos contrastes e pelos paradoxos que vão construindo e constituindo as marcas de uma identidade regional.

"Conta, conta, cantador
Conta a história que eu pedi
Dizem que o jequi tem onha
Conta as onhas do jequi"
(Gonzaga Medeiro)

A REGIÃO

São 80 (oitenta) municípios espalhados numa área de 85.467,10 km², o que equivale a 14,5% do Estado.
O Vale dividi-se em três regiões: Alto Jequitinhonha (região de Diamantina, próxima à nascente do rio), Médio (região de Araçuaí) e Baixo Jequitinhonha (região de Almenara, próximo à foz, no sul da Bahia). O Alto e o Médio Jequitinhonha situam-se na porção ocidental da BR 116 e o Baixo Jequitinhonha, na porção oriental.

A sua vegetação é bem diversificada e caracteriza, de forma marcante, as suas divisões regionais. Na porção ocidental, por exemplo, na região próxima à Serra do Espinhaço (local onde nasce o Rio Jequitinhonha), as terras são mais altas, havendo predominância das chapadas cuja vegetação natural é o cerrado. As chapadas são entrecortadas por córregos, ribeirões e pequenos rios que, numa porção mais baixa, acabam formando as grotas.


Na porção oriental, as terras são mais baixas e os índices de temperatura são mais elevados devido à diminuição da altitude. Nessa porção, predomina a vegetação do tipo savana e, ocupando quase que totalmente o lugar da extinta Mata Atlântica, encontra-se uma extensa plantação de capim colonião que serve para alimentar as fazendas de gado, principal atividade econômica nesta faixa do Vale.

Além de uma vegetação de transição entre o cerrado e a caatinga, o Vale apresenta, ainda, uma vegetação ciliar que cresce às margens de seus rios. No entanto, é preciso ressaltar que a mata ciliar, das margens do rio Jequitinhonha, já foi em grande parte destruída, o que vem acarretando sérios problemas ambientais para a região, dentre eles o assoreamento do rio.

Na época de intensa navegação no rio Jequitinhonha, a cultura de vazantes era muito praticada. Era até comum dizerem que uma das "leis" dos canoeiros era a de se apropriarem dos produtos plantados nas vazantes que estivessem ao alcance do remo.

Entretanto, conforme o relato de seu Odilo Paulo, antigo canoeiro da cidade de Jequitinhonha: "É nada, era chumbera", como uma forma de dizer que esta prática não agradava muito aos fazendeiros nem aos donos das vazantes, que muitas vezes os recebiam à bala (chumbera).

O nome Jequitinhonha deriva de uma prática dos índios Botocudo de deixarem à noite, no rio, uma armadilha pronta para pegar peixe, certificando-se, no dia seguinte, de que no "jequi tinha onha" (jequi: armadilha de pesca feita de bambu; e onha: peixe). O rio também é conhecido como Rio Grande e, já no estado da Bahia também é conhecido por Rio Grande de Belmonte.

Típico rio de montanhas, ele nasce na Serra do Espinhaço, em Pedra Redonda, município de Serro. Corta o nordeste de Minas percorrendo 1.086 km – 888 km em Minas e 198 km na Bahia – ou 181 léguas, das quais 103 navegáveis, até encontrar o mar, na cidade de Belmonte, no sul da Bahia.

No final do século XVI, o rio Jequitinhonha já havia sido descoberto por aventureiros instigados pelas notícias da existência de metais e pedras preciosas no sertão mineiro, especialmente prata e esmeraldas. Iam em busca do "Sol da Terra", que acreditavam poder encontrar às margens do rio.

No entanto, com a descoberta de minas de ouro em Vila Rica (Ouro Preto), no século XVII, esse rio foi abandonado e ficou esquecido até que, no final do mesmo século e início do século XVIII, escobriram ouro em Hivituriú (denominação indígena de montanhas frias), atual cidade de Serro. Quando, alguns anos mais tarde, descobriram diamantes no Arraial do Tijuco, atual cidade de Diamantina, consolidou-se, então, a exploração do rio Jequitinhonha e do rio Araçuaí, seu principal afluente.

O movimento das canoas - e também das tropas - foi responsável pelo desenvolvimento de muitas cidades e povoados da região. A cidade de Araçuaí, localizada no Médio Jequitinhonha, é um exemplo desse fato, já que o intenso movimento de canoas transformou a cidade num importante entreposto comercial, em toda essa região, estabelecendo ligação com várias cidades do Vale do Jequitinhonha e com algumas cidades do sul da Bahia. A esse respeito, João Valdir de Souza transcreve a seguinte citação, de uma obra não referida:

A cidade de Araçuaí, fundada entre 1830-1840, a partir de um arraial
estabelecido, tempos antes na fazenda da Boa Vista da Barra do
Calhau, 'ponto de arribada das canoas que subiam o Jequitinhonha',
tornou-se, a partir de meados do século, importante entreposto
comercial. De todos os povoados e distritos vizinhos, num raio de 50
léguas, convergiam para ali as tropas que transportavam as
mercadorias a serem distribuídas em todo o norte de Minas e
escoavam a produção que dele descia o rio
Antigo Fórum - Atual Prefeitura Municipal de Araçuaí

No entanto, com a abertura das estradas de rodagem, de outros canais de escoamento de mercadorias e produtos, e de outras vias de comunicação e de transporte na região, o comércio de Araçuaí, e do Vale como um todo, tendeu a declinar, amargando mais um longo período de estagnação de sua economia.
Dificilmente encontra-se uma história contínua do Vale, existem longos períodos sem registro, períodos de silêncio que impedem que se tenha uma visão mais ampla do processo de ocupação e de desenvolvimento da região.

UM VALE DE CONTRASTE

Na década de 1960, o Vale do Jequitinhonha passou a acompanhar a expulsão do agregado do interior da fazenda e a invasão de terras camponesas por falsos fazendeiros. Nos anos 70, foi a vez das empresas reflorestadoras expropriarem os pequenos produtores de suas terras.

Baseadas num programa de reflorestamento do Governo Federal, essas empresas tinham como objetivo principal o abastecimento de indústrias siderúrgicas e de papel e celulose. Nessa época, grande parte do cerrado foi substituída pela monocultura do eucalipto o que, de certa forma, rompeu com o sistema "grota-chapada", restringindo os camponeses às áreas de grotas (terras baixas), "as quais, sozinhas, não tinham condições de suprir as necessidades básicas das famílias" que viviam nessa área.

Isso acontece porque a relação entre grota e chapada permite duas formas de apropriação da terra: uma que se caracteriza pela apropriação privada das terras baixas (veredas e grotas), e a outra, pela apropriação comum das terras altas (as chapadas).

Segundo Eduardo Rios-Neto e Paula Vieira, é nisto que consiste o complexo "grotachapada", onde a chapada passa a funcionar como complemento à lavoura de subsistência, oferecendo produtos como a madeira, ervas, frutos e pastagens, além de favorecer o reabastecimento dos lençóis freáticos da região que, a partir do plantio do eucalipto, ficou seriamente comprometido.

Ainda incentivada pelo Estado, iniciou-se também, nesta época, a produção de café na região. No entanto, esta se deu sob bases capitalistas o que, segundo Silva, "desarticula os arranjos tradicionais entre pequenos produtores e fazendeiros".

Percebe-se, então, que a partir de discursos de "progresso" e de "modernização", o Vale do Jequitinhonha foi sendo alvo de políticas de desenvolvimento cujo interesse principal era, estritamente, financeiro e de benefício transitório. Certamente, um grande contingente de pessoas foi mobilizado para trabalhar no plantio de eucalipto e na lavoura de café, permanecendo, dessa forma, em sua terra, sem a necessidade de migrar para o trabalho sazonal em lavouras no interior do estado de São Paulo. No entanto, uma série de problemas sócio-ambientais foram desencadeados e agravados a partir da implantação desses "programas de desenvolvimento".

fonte: Revista Discente Expressões Geográficas, nº 05, ano V, p. 81 – 100. Florianópolis, maio de 2009. 
www.geograficas.cfh.ufsc.br
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